O que os leilões já fizeram por nós?
O primeiro lote de radiofrequências liberado para serviços móveis nos Estados Unidos foi concedido por sorteio na década de 1980. Na época, optou-se por substituir os processos de “comando e controle” ou “concurso de beleza”, considerados excessivamente lentos, custosos, fictícios, subjetivos e não transparentes. O sorteio ofereceu 643 concessões e atraiu mais de 400.000 inscritos , a maior parte deles empresas intenção de “revender” a concessão a curto prazo, em vez de construir uma rede. O processo foi calamitoso e durou seis anos, atrasando o lançamento de serviços móveis e não atendendo a nenhum interesse público.
Em 1993, o Congresso dos Estados Unidos permitiu a realização de leilões de espectro para objetivos que não a radiodifusão. O leilão com rodadas múltiplas e simultâneas de 1994 para os 30MHZ de banda durou quatro meses e alcançou US$ 7,7 bilhões, superando o custo histórico da Federal Communication Commission. Seu sucesso levou os parlamentares norte-americanos a tornar os leilões obrigatórios em 1997.
O modelo de concurso de beleza dominaou grande parte do mundo até a virada do século XXI, quando a aplicação da teoria econômica à atribuição do espectro passou a vigorar, acompanhada por uma abordagem mais liberal e de incentivo à competição. Os leilões logo se tornaram a norma, com apenas alguns países ainda resistindo à tendência e mantendo o formato de “comando e controle”,
Embora os leilões possam ser muito mais eficientes do que outros processos de atribuição, quando mal projetados, podem ter um impacto negativo na criação de valor, sobretudo quando preços artificialmente inflados comprometem os balanços das empresas que conquistaram o direito de explorar o escasso recurso.
O pai da teoria econômica do espectro, Ronald Coase, argumenta que, para o espectro, “a delimitação de direitos [de propriedade] é um prelúdio essencial para as transações de mercado”. Assim que há certeza jurídica em torno de uma propriedade do espectro, para atribuí-la, “empregue o mecanismo de preço, pois isso aloca recursos para os usuários sem necessidade de regulação governamental”. Foram necessários 34 anos para que os formuladores de políticas públicas dos EUA passassem a adotar esse princípio e implementassem leilões de espectro. Coase acreditava que, com o mecanismo de mercado, “o objetivo deveria ser maximizar o resultado” do espectro. Isso é obtido quando são estabelecidas as condições certas para a exploração completa do recurso pelos detentores de espectro, que por sua vez precisam dos incentivos certos para implantar serviços de alta qualidade, amplamente disponíveis a uma grande parte da população.
Altos preços em leilões de espectro sempre foram um ponto sensível entre os licitantes, especialmente no setor móvel. Essas reclamações tendem ganhar corpo quando uma nova geração tecnológica – no momento, o 5G – impõe uma alta demanda de investimento, à qual se somam outros objetivos políticos ainda mais caros para o setor.
Neste sentido, embora as reclamações sobre preços excessivos possam ser totalmente justificadas em algumas situações, em especial em países que historicamente impuseram preços elevadíssimos para o uso das faixas de frequência, os leilões competitivos, amplificados de várias formas, ainda devem desempenhar um papel importante nas atribuições de espectro, e o projeto destes editais não deve distorcer os incentivos ao investimento. Além disso, as outorgas devem ser complementadas pela crianção do mercadosecundário de espectro, juntamente com a possibilidade de sublocação de partes do mesmo a terceiros, inclusive para aplicações de interesse privado. A nota conclui com algumas diretrizes práticas para atribuição de novas bandas em leilões, com objetivo de garantir a maximização de resultados tangíveis para a sociedade.
Os leilões são desejáveis porque introduzem concorrência no processo de atribuição. O espectro resulta sendo destinado para as melhores propostas, que tendem a vir daqueles que podem usá-lo com mais eficiência, com maior criação de valor. Mecanismos de atribuição de “comando e controle” alternativos, como os “concursos de beleza”, dependem do julgamento dos reguladores, que podem ser subjetivos, e podem estar sujeitos a manipulação por parte dos interessados. De fato, um dos principais fatores da ampla adoção e do sucesso dos leilões do espectro vem do fato de que “concursos de beleza” não produzem os resultados desejados.
Apesar dos problemas da enorme maioria dos “concursos de beleza”, há situações nas quais esses processos podem gerar bons resultados, sobretudo quando são realizados de maneira construtiva, o que leva o mercado a entregar o resultado que os formuladores de políticas públicas desejam, por exemplo, em termos de cobertura, capacidade e concorrência. A China e o Japão não cobram taxas antecipadas pelo uso espectro, mas julgam se os compromissos de implantação das empresas correspondem aos objetivos das políticas públicas nacionais e atribuem espectro conforme esse critério. Os dois países atualmente desfrutam de conectividade mais expansiva que os outros na região, à exceção da Coréia do Sul. Medida pelo número de estações rádio-base 4G instaladas por pessoa, a densidade das redes móveis da China e do Japão corresponde a quatro vezes a dos países europeus e a dos Estados Unidos. Na América Latina, o Chile historicamente adotou um processo de atribuição de espectro de “comando e controlar” e suas redes são cerca de três vezes mais densas que as da Argentina, do Brasil, Colômbia e México.
Embora a densificação das redes possa ser atribuída a vários fatores, particularmente regras de planejamento favoráveis e custos baixos de acesso a infraestrutura passiva, um fator que desempenha um papel importante é queoperadoras que não tenham o caixa limitado devido a custos excessivos pelo uso de espectro.. Conforme observado em outro ponto deste documento, a densificação das redes é um elemento essencial para que o definimos como umaversão expansiva do 5G se torne realidade, e sua consideração deve se tornar cada vez mais importante no contexto dos objetivos das políticas de atribuição de espectro, refletindo-se na forma como os leilões são projetados.4
Evolução no projeto de leilões
A imensa maioria dos leilões de espectro de alto valor é contestada pelas empresas que se propõem a oferecer serviços similares a partir do seu uso. No entanto, abordagens semelhantes se aplicam quando há concorrentes que apresentam serviços diferentes, como, po
exemplo, radiodifusão e comunicação móvel ou banda larga fixa e móvel.
O modo de operação básica de um leilão do espectro pode ser descrito da seguinte forma: uma empresa que apresenta uma proposta pode ser concebida a partir de uma conjectura sobre como o mercado vai se desenvolver durante o período de validade da licença, sobretudo no que diz a respeito ao crescimento da demanda, estrutura do setor, nível de competição e outros fatores. Nesse momento, a empresa estima a receita que pode obter e os custos dos suprimentos (incluindo os custos de capital, mas excluindo o custo do espectro). A diferença entre os dois é o máximo teórico que a empresa pode oferecer pelo espectro, embora espere pagar muito menos por ele. Nessa base, empresas que esperam ser mais eficientes fazem propostas mais altas e têm perspectiva de mais sucesso no leilão.
Nos últimos 25 anos, deram-se passos gigantescos na variedade dos formatos de leilão disponíveis. Isso é consequência de avanços enormes e bem-sucedidos na área do projeto de mecanismos para condução dos mesmos. Há evidências de que as empresas estão dispostas a fazer propostas mais altas nos leilões com projetos mais sofisticados, que as isolam de alguns riscos.5
Como no caso de direitos sobre outros recursos naturais de propriedade do Estado, como os direitos de exploração de petróleo ou outros recursos mineais, os leilões do espectro permitem que o Estado extraia o valor a partir da escassez desse ativo, num modelo de autorização, ou alugue o ativo sem precisar operar o negócio se essa fosse sua atribuição, como num modelo tradicional de concessão. Governos ausentes abusam do seu poder monopolista sobre o lado da oferta no processo (veja abaixo), o que é uma forma direta de obter receitas adicionais que podem ser usadas para buscar outros objetivos do governo. Ao decidir como gostar esse dinheiro, o governo precisa fazer estabelecer um equilíbrio entre seus objetivos sociais amplos, como educação, saúde e defesa, e objetivos setoriais mais focados, como a ampliação da conectividade como ferramenta de desenvolvimento econômico.
A experiência mostra que o leilões podem ser adaptados para aumentar esses objetivos sociais e econômicos amplos no setor móvel, como maior cobertura geográfica e manutenção da competição no mercado de serviços móveis. Assim, algumas licenças podem ser associadas à obrigação de ampliar a cobertura das redes para as chamadas áreas “não comerciais”. Além disso, para assegurar competitividade no mercados, pode ser desejável estabelecer um limite máximopara quantidade de espectropara cada operadora, chamados “spectrum caps” em inglês. Os dois tipos de condições já foram amplamente aplicados sem impacto significativo no encerramento satisfatório dos leilões.6 Em cada um dos casos, o governo está sacrificando um pouco de receita do leilão para obter maior cobertura ou mais concorrência.
Possíveis problemas com leilões
Os leilões podem dar errado por vários motivos. Um deles surge quando o vendedor do espectro – ou seja, o governo ou outra autoridade relevante – explora seu próprio poder de mercado para aumentar a receita do leilão. De uma forma mais simples, isso pode ser feito acumulando-se espectro disponível para liberação, criando uma escassez artificial desse recurso. Outro método igualmente indesejável é vender todo o espectro disponível em um único lote: a melhor proposta recebe poder de mercado e, que – quando avaliado pelo método descrito acima – gera um prêmio maior para aquele licitante e ausência de recursos competitivos para os demais. Mais sutilmente, uma parcela do espectro a ser liberada pode ser empacotada de tal modo que somente duas empresas podem adquirir quantidades suficientes.7 Esses “duopolistas” devem ser capazes de manter os preços acima dos níveis competitivos, mas em um nível um pouco abaixo de uma única empresa.Esses resultados tm efeitos adversos sobre a cobertura, a qualidade e o preço, reduzindo a adoção dos serviços, restringindo a conectividade e dificultando o crescimento econômico e, consequentemente da arrecadação de impostos pelo governo que o acompanha.
Quando isso acontece, há uma correlação direta entre custo de espectro mais altos e preços mais altos dos serviços para os consumidores, mas os primeiros não são a causa dos segundos. A causa é, de fato, o oposto: é a expectativa de altos lucros causados pela manipulação do mercado do espectro que leva a propostas mais altas durante os leilões. Algumas evidências empíricas dessa causalidade são discutidas abaixo.
Outro possível problema com os leilões é que eles podem gerar um excesso de propostas, como consequência de uma tendência sistemática de algumas operadoras manterem projeções otimistas do futuro e, por isso, fazerem propostas superiores ao valor do espectro, seja para capturar para si esse valor, seja para impedir que outros o façam. Quando isso ocorre, a empresa que faz a proposta excessivamente alta pode tentar equilibrar a situação aumentando os preços dos serviços. No entanto, isso exigiria uma ação semelhante por parte de todos os outros prestadores de serviços de telecomunicações do mercado, o que não é provável. Além disso, os licitantes em leilões de espectro costumam ser grandes operadoras internacionais com acesso a consultoria adequada quanto à valoração desses ativos e familiaridade com os riscos da chamada “maldição do vencedor”, embora essa possa ter prevalecido no recente leilão alemão, no qual a reação dos ganhadores foi amarga.8
Oferta e demanda
O preço de um bem ou serviço é uma função da relação entre oferta e demanda. Em leilões de espectro, a lógica sugere que, se tudo for igual, uma oferta de uma quantidade maior de espectro reduzirá o preço pago. Nesta primeira onda dos leilões do 5G na Europa e nos Estados Unidos, a quantidade de espectro aberta para os respectivos mercados é extremamente contrastante.
O presidente dos EUA declarou que “a corrida do 5G é uma corrida que os Estados Unidos precisam ganhar” e, para dar a seu setor doméstico a melhor oportunidade, o regulador nacional Federal Communications Commission (FCC) tem inundado o mercado com autorizações de uso de espectro a preços baixos.9
“Estamos adotando uma postura agressiva, usando todos os meios: estamos liberando bandas altas, médias e baixas do espectro para o 5G”, diz Ajit Pai, Presidente do Conselho da FCC. “No total, nós disponibilizamos para o setor privado aproximadamente... 1.550 megahertz de espectro.” E a FCC não vai parar por aí. Um terceiro leilão do espectro em 2019 “será o maior da história dos EUA, liberando mais 3.400 megahertz de espectro para o mercado comercial.10”
Comparado com essa “inundação” de espectro nos Estados Unidos, o ritmo de liberaçãode espectro na Europa está indo a conta-gotas. A principal banda pioneira para o 5G na Europa é a de 3,4–3,8GHz e se estabeleceu o prazo do final de 2020 para que os Estados membros se “reorganizem e permitem o uso de blocos suficientemente grandes da banda de 3,4–3,8GHz”.11
O histórico europeu de cumprimento de prazos causa preocupação e o continente não pode se dar ao luxo de reeditar a corrida do 4G, na qual outras regiões aceleraram a liberação de blocos e assumiram uma liderança inconteste. Enquanto os EUA haviam leiloado 84MHz na banda de dividendo digital já em 2008, até 2013 somente nove dos 27 Estados-membros da UE haviam cumprido seus compromissos de liberação do espectro e, em consequência, os EUA tinham 10 vezes mais assinantes de 4G à época.12 Não surpreende que as externalidades associadas à economia digital tenham acumulado nos EUA, onde somente aplicativos contribuem com aproximadamente US$ 100 bilhões por ano para a economia,13 mas tenham tido dificuldade para se desenvolver não continente europeu.
Como mostra a tabela abaixo, a abordagem atual da atribuição do espectro do 5G na Europa é mista. Há uma grande variação nos preços pagos, o que está intimamente correlacionado com a quantidade de espectro disponibilizada. Leilões de 5G eficientes e competitivos atualmente predominam quando comparados a leilões problemáticos, por 4 a 3. Mas margem de vitória é estreita, e há jogo pela frente,.